Filmes em todo-o-terreno

Filmes em todo-o-terreno
“Quando aponto o dedo a alguém com base nos filmes que eu crio, mais cedo ou mais tarde o julgamento precipitado vai-se revelar.”

Num dos fins-de-semana mais quentes de 2017 participei na Baja TT do Pinhal, na zona da Sertã, e posso dizer que o calor me subiu à cabeça. Entrei na corrida com um carro novo e aos poucos fui ganhando confiança e acelerando. Estava já a dominar a pista, quando aparece um carro à minha frente.

Deixei de ver. O pó que o carro da frente levantava mergulhou-me num nevoeiro cerrado. Pedi passagem ao carro da frente, através do computador de bordo. Uma vez, duas vezes, sem sucesso… Fiz uns 40 ou 50 km a comer pó, sempre a pedir passagem… e nada. Comecei ficar impaciente. As regras são claras nestas corridas, e é obrigatório ceder passagem quando há um pedido, para evitar acidentes. Estive naquilo mais de uma hora, cada vez mais irritado, a chamar todos os nomes imagináveis ao condutor da frente.

Na paragem seguinte eu estava cego, a refilar com tudo e com todos. Os colegas diziam-me para me acalmar, que aquilo não tinha importância. A irritação foi-se dissipando e decidi não fazer queixa do condutor.  Soube depois que a pessoa em causa era o presidente da Vodafone Espanha, António Coimbra, e que ele estava na minha equipa.

No dia seguinte, voltei à prova com a minha mulher ao lado. Mais uma vez ia super confiante, a acelerar, quando, num gancho à esquerda, cometi um erro e o carro capotou. A custo, saímos do carro e começámos a tentar levantá-lo, para voltar à corrida. Tentámos e tentámos, mas não havia maneira de conseguirmos endireitar o carro.

Passaram por nós vinte ou trinta carros, no meio de nuvens de pó. Pedimos ajuda, fizemos sinais, mas os condutores, quando viam que estávamos bem, seguiam sem parar. Nisto, passou o último carro. Quem é que vinha nesse carro? Nem mais nem menos do que o António Coimbra, que parou e perguntou se precisávamos de ajuda. Disse-nos que estava sem travões e que aquele troço já estava perdido, pelo que não lhe custava nada ajudar. Com um guincho eléctrico na parte da frente do carro e um puxão do carro dele em marcha atrás, o meu carro endireitou-se.

Depois da corrida fui-lhe agradecer e pedir desculpa. Disse-lhe que, ele não sabia, mas no dia anterior eu tinha-lhe chamado todos os nomes enquanto andava atrás dele a comer pó. Foi assim que descobri que o computador dele tinha avariado e que o aviso dos pedidos de ultrapassagem não estava a funcionar.

Tirei uma lição daquela corrida azarada: eu não faço ideia do que se passa na cabeça dos outros. Posso conjecturar, presumir, mas não posso adivinhar a realidade. E quando aponto o dedo a alguém com base nos filmes que eu crio, mais cedo ou mais tarde o julgamento precipitado vai-se revelar. Mais, pode virar-se contra mim, e a pessoa que eu critico ser a pessoa que mais à frente me vai dar a mão.

No nosso dia-a-dia, talvez não haja exemplos tão extremos, mas há sempre aquele momento em que alguém não nos responde a uma mensagem, ou não nos diz bom dia, e nós nos irritamos sem sequer nos apercebermos que estamos a deixar a nossa imaginação comandar a nossa disposição.

Podia, em vez de ter assumido o pior, em vez de me ter irritado com uma suposição, ter perguntado o que é que se passava. Apostaria que, a maior parte das vezes, as fontes da nossa irritação são banais e perfeitamente aceitáveis. E quando não são, ao perguntar o que se passa, podemos pelo menos abrir a porta ao diálogo, para que as coisas se resolvam.