A guerra começou quando eu aterrei em Londres. Pela primeira vez desde a pandemia, fui visitar o Gonçalo, que está a fazer o segundo ano da faculdade em Cambridge. Os quatro dias que passei com ele foram os primeiros quatro dias da ofensiva russa na Ucrânia.
Estes dias – e os que se seguiram – parecem ter-se expandido em semanas, em meses, com tudo o que aconteceu.
Na primeira madrugada recebi um telefonema da Satya, uma amiga que trabalha na área do desenvolvimento pessoal. Ela faz regularmente retiros num centro na Ucrânia, e estava a receber telefonemas de pessoas a dizer que iam a caminho de Portugal: o país deles estava a ser invadido e havia bombas a cair. Ela ligou-me: «Pedro, preciso da tua ajuda – vêm trinta pessoas da Ucrânia e preciso de casas onde as colocar».
Foi com esse telefonema que começou esta história, à procura de casas que recebessem estas famílias. Começámos por procurar arrendamentos e percebemos que era difícil por essa via. A seguir pusemos a equipa comercial inteira à procura de casas pela via solidária, com a ajuda das redes sociais e da câmara municipal.
Num instante este movimento cresceu, com outros agentes imobiliários, com as outras lojas da RE/MAX Latina, e depois cresceu para fora da RE/MAX, por todo o país, nas redes sociais – e num período de 24 horas conseguimos encontrar centenas de casas.
Nestes poucos dias também cresceu o número de refugiados nas fronteiras ucranianas, gente a viver em condições precárias e com temperaturas negativas – e percebemos que eram precisos bens de primeira necessidade. Voltámos a pedir ajuda e as pessoas começaram a aparecer nas nossas lojas para entregar alimentos, medicamentos e roupa.
Ao ver a quantidade de doações, decidimos que tínhamos de fazer chegar ao destino as várias toneladas de material que estávamos a recolher. Organizámos uma caravana humanitária e partimos com destino à Polónia e à Roménia.
Foram vinte e um carros, monovolumes com capacidade para 7 ou 9 pessoas e uma carrinha de 50 lugares, vindos do Algarve, do Porto e de Lisboa. Éramos todos voluntários: cada um pagou o seu carro e as suas despesas.
Esta não foi uma ação racional – provavelmente teria sido mais barato usar camiões TIR ou ir de avião. Este é um movimento que veio do coração, e não é só nosso: por toda a Europa as pessoas estão a unir-se em demonstrações e ações de solidariedade para com o povo ucraniano.
A pressa em chegar à hora marcada fez-nos conduzir mais de 24 horas sem parar para descansar. Não recomendo a ninguém fazer uma viagem assim: foi desgastante a privação de sono, o frio, o stress físico e emocional. E contudo o nosso foco era tão forte que tudo isso ficou para trás.
Eu fiquei no grupo que seguiu para a Polónia, a caminho da estação de comboios de Varsóvia, onde tínhamos combinado encontrar as pessoas que precisavam de ajuda, identificadas com o apoio das entidades oficiais.
A chegada
O que mais me marcou quando chegámos foi o olhar das pessoas.
Era um olhar de medo, um olhar de interrogação sobre o nosso grupo, como se perguntassem quem eram aquelas pessoas que tinham ali aparecido com carros e uma camioneta para os levar para longe. A maioria não falava inglês.
Era um olhar de trauma. Encontrámos pessoas que saíram de casa com a roupa que tinham no corpo, pessoas que usaram guias de viagem para as orientar no caminho até à fronteira da Polónia.
Era um olhar de perda, de dor. Mulheres que deixaram para trás os maridos que não podiam sair do país. Mulheres que deixaram para trás os pais, demasiado velhos para viajar, demasiado velhos para deixarem o país onde queriam morrer. Mulheres que partiram, sozinhas, com a esperança de salvar os filhos da guerra.
Os que ficaram
Não havia lugar para todos. Conseguimos trazer connosco quase 150 pessoas, mas havia umas dezenas que não tinham lugar.
O momento em que tivemos de escolher quem vinha e quem ficava para trás vai ficar gravado na minha memória para sempre – com a sensação terrível de que podíamos ter trazido mais algumas pessoas – mesmo sabendo que não havia lugar, que estávamos a fazer o nosso melhor.
Esta angústia também estava no olhar das mães e das crianças que ficaram.
A viagem
O início da viagem de volta a Portugal foi feito num silêncio que foi diminuindo a cada quilómetro que fazíamos.
No meu carro iam três mães e quatro filhas e os sorrisos foram crescendo com a distância percorrida e com as Barbies e os chocolates que comprámos para as crianças nas estações de serviço.
Devagarinho fomo-nos conhecendo, um sorriso transformou-se numa conversa, num abraço, num riso, até um momento em que começaram a cantar no carro. O silêncio tinha ficado para trás.
A generosidade
Nesta viagem vimos sofrimento, dor e miséria, mas também vimos o lado melhor do ser humano.
Em Varsóvia tivemos o apoio do Secretário de Estado da Internacionalização que, para além de se disponibilizar para articular esforços com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e com a Segurança Social, mostrou um interesse genuíno em ajudar aquelas famílias.
Em França pedimos ajuda porque precisávamos de dormir. O Hotel Indigo Opera, um hotel de luxo no centro de Paris, ofereceu-nos a dormida. O Hotel Intercontinental, um dos melhores hotéis de Paris, ofereceu-nos o jantar.
Foi a primeira e única noite que dormi em sete dias. Nessa noite pudemos ver o alívio e a felicidade nas pessoas que vinham connosco – as crianças sorriram e as mães finalmente perceberam que estavam bem entregues. Aquela foi provavelmente a primeira refeição a sério que tiveram no espaço de muitos dias.
O jantar foi mágico, pela surpresa da generosidade do Hotel Intercontinental, do Hotel Indigo Opera e da Inês, a responsável do hotel que tornou esse momento possível.
No regresso, uma pessoa, que prefere ficar anónima, ofereceu-se atestar todos os carros que iam connosco.
À entrada em Portugal, parámos para pôr gasolina e um senhor – um senhor humilde, com um carro humilde – perguntou de onde é que vínhamos. Expliquei-lhe resumidamente o que estávamos a fazer – numa conversa de um minuto.
Ele abriu a carteira, agarrou todo o dinheiro que tinha e disse «Toma lá!». Quando não aceitei o dinheiro, ele deu-o, 50 ou 60 euros, àquelas famílias. Disse que queria ajudar.
No último dia desta viagem entregámos estas famílias aos amigos e conhecidos que as esperavam em Portugal. As crianças agarraram-se a nós e as mães abraçaram-nos – tínhamos alargado a nossa família.
Foi uma viagem complexa, profunda, intensa – difícil de pôr em palavras. Ainda só dormi uma noite, e ainda estou a refletir em tudo o que aconteceu no que provavelmente terá sido a viagem da minha vida.
Carrego no meu coração as pessoas que encontrei, os olhares de quem conseguimos trazer para a segurança e das que ficaram para trás.
Nesta viagem vivemos o paradoxo da dor e do medo e do amor e da esperança; da escuridão e da luz – uma luz irradiada pela generosidade de tanta gente que fez connosco este caminho.